sexta-feira, 1 de maio de 2020

Ou assumimos nossa coexistência ou sumimos

Miguel Almir - Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

Os modelos de desenvolvimento econômico que regem nossa sociedade, sob a égide do capitalismo, em suas diversas vertentes, instalaram visões de mundo que propagam e afirmam concepções e posturas lastreadas no individualismo e na competição como únicos caminhos e modos possíveis de viver em sociedade. 

Diversos/as pensadores/as, pesquisadores/as, sábios/as de tradições ancestrais, pessoas imbuídas de repertórios culturais que primam pelos caminhos da coexistência solidária, da ecohumanização há muito tempo têm alertado sobre o que é flagrantemente óbvio: a predominância da lógica da competição, da supremacia do ter em detrimento do ser, do produtivismo predatório, arrasta a humanidade para a sua própria destruição. Esses modos de desenvolvimento econômico têm se revelado explicitamente insustentáveis pelas consequências devastadoras que proporcionam para os viventes do planeta terra, para o ecossistema. 

A supremacia desses paradigmas incide num desenvolvimento econômico que privilegia o lucro pelo lucro, a riqueza material e financeira de uma pequena minoria através de processos destrutivos das vidas, das relações entre os humanos e destes com a natureza/ecossistema. Um des-envolvimento extremamente utilitário e produtivista, mecânico e funcional desprovido de envolvimento humano, de respeito e de cuidado para com nossas vidas e as de todos os seres com os quais somos interdependentes e complementares.

Os mananciais das mais variadas fontes de sabedorias ancestrais (africanas, ameríndias....), muitas pesquisas realizadas nas áreas das humanidades e de outras ciências, entre outras fontes, nos afirmam, de modo e imperativo, que nós, seres humanos, somos destinados, originariamente, aos vínculos de coexistência, de cooperação, de compartilhamento, de solidariedade. Na proporção em que, direta e indiretamente, somos interdependentes uns dos outros, em dimensões tanto visíveis quanto invisíveis, carece de que cuidemos com afinco e prudência dessa teia in-tensiva de interligação para que esta não se esfiape e se dilacere. 

Para que essa teia de coexistência seja cuidada e renovada constantemente é preciso que cultivemos os valores primordiais da generosidade, do altruísmo, da equidade, da compaixão, dos modos de ser-com, da ecofraternidade. Enfim, do ecoamor que supõe amar a todos os viventes. 

De modo geral, o que mais fizemos nos últimos tempos - salvo as boas exceções -, foi fragmentar e rasgar brutalmente essa teia mediante ações individualistas e competitivas de cunho extremamente mercantil e predatório impulsionadas pela voracidade de um consumismo que, se não tomarmos outro rumo, por fim, nos consumirá. Essas posturas predatórias têm nos levado a uma barbárie civilizóide, a uma brutalização autofágica no reinado do homo stupids.  

Nossa história humana é movida pela gravitação dos fluxos tensoriais, dos germes das contradições que podem potencializar transformações profundas. Muitas vezes, torna-se necessário acontecerem eventos e fatos que revelam crises intensas e impactantes, de forma trágica e dilacerante, para que tomemos consciência (ou não) das ações doentias que estamos tendo para tocar a vida, as relações entre os humanos e com os outros seres viventes.

Foi preciso surgir um microorganismo invisível e imensamente perigoso, em forma de um vírus, com potências corrosivas e letais para provocar uma interrupção abrupta e radical no ritmo frenético e devastador em que estávamos levando nossa vida cotidiana. Uma coroa invisível e espinhosa traz ameaças profundas de morte em massa para a raça humana e, de modo assustador, impõe freios violentos em nossos modos de estar no mundo, impulsionados por essas posturas predatórias em relação às vidas humanas e não humanas que perfazem o ecossistema.  

Considerando uma perspectiva vasta de compreensão humana que inclui e ultrapassa os vãos do saber e nos descortina pelos desvãos da sabedoria, uma das lições que, de modo contundente, podemos aprender, é que, como afirma a expressão africana ubuntu, sou porque nós somos. Ou seja, nessa teia de coexistência que nos interliga de forma micro e macro nos complementamos uns com os outros; nos afirmamos e nos qualificamos humanamente na proporção e que nos entrecruzamos solidariamente. Queiramos ou não, sozinhos não subsistimos. Somos, de modo estruturante, interligados uns com os outros nas travessias de nossas sagas humanas, inter-humanas e ecohumanas.

Parece ficar patente que, ou cuidamos com desvelo e primor dos laços que nos entrelaçam mediante atitudes altruístas e altaneiras ou nos esgarçamos. Ou nos amamos, nos ecoamamos, ou nos armamos, nos devoramos e nos dizimamos. Nossa existência somente pode se afirmar através de nossa coexistência solidária. Ou assumimos essa coexistência ou sumimos. O que nos sustenta, como humanidade, não é a egocidadania mas a ecocidadania. Ou nos entrelaçamos ou nos lascamos!

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